Aqui voltamos aos bastidores, ao lado das lentes que mais interessa Godard na feitura de um filme, ou no simples desejo de que ele seja feito. Mise en abyme como pretexto, MacGuffin hitchcockiano para o que realmente importa na exploração da linguagem, há no enredo todos os clichês e caricaturas que cercam uma produção. O conflito não é saber se o filme será, ou não, concluído, se o dinheiro bastará, ou se os melhores atores serão encontrados. Como é típico no diretor, todas estas crises se esvaziam em detrimento de uma angústia mais bem partilhada pela montagem do material recolhido para narrar a trama. São os fades e fusões entre as imagens, assim como o esmagamento de elipses e raccords; é o equilíbrio entre a música pop e a erudição de Bartok, tanto quanto a experimentação desdramatizada de vozes, aquilo que determina a atmosfera dominante, o tom de lamento que percorre todo o filme. Por sinal, é deste completo esvaziamento que brotarão as Histoire(s), prenunciadas na estilística aqui disposta.
Não deixa de ser um cortejo fúnebre cada uma das sequências em que vemos a longa fila de pessoas sendo testadas para o casting. Numa sucessão deleuziana, em que se repetem monocordicamente as falas, os corpos e os ângulos, temos aí uma busca pelo que jamais se satisfará. Os closes que se sobrepõem, os traços de faces investigados em slow, longe ficam das sublimes presenças de screentests que unem Warhol e Garrel. Aqui, a rostidade é exposta para se anular, os desejos são estabelecidos para se frustrarem, como bem representa a personagem de Eurídice, aspirante a atriz que não convence nem o produtor, seu marido, e nem o diretor de que pode ser a resposta para suas buscas. Enquanto um afirma ser o rosto dela clássico demais, parecido inclusive com uma intérprete de Renoir, o outro teme que ela jogue fora a sua vida como fazem todos os que estão envolvidos com as filmagens. Ao que ela pergunta: “É verdade que os filmes matam a vida?” Já não é possível que o clássico simbolize algo além da morte, parece responder a dura resistência em se permitir que Eurídice atue ou, sequer, faça também um dos testes. É como se houvesse na câmera algo esperando para lhe roubar a alma.
Em meio às admoestações, o produtor demonstra alguma saudade pelo preto e branco das primeiras fotografias, sugerindo que talvez estas pudessem dar conta do rosto de Eurídice. Ele declara que o P&B documentou o amanhecer de uma linguagem, o que serve para confirmar parte da lógica que move as cores de Grandeur et Décadence, inclusive pela iminente pasteurização do vídeo. Ao contrário do produtor, o filme dentro do filme – que talvez por esta oposição não se concretize – não encontra espaço para nostalgia, e se dele emana uma notável tristeza, trata-se não de um pesar pelo que se perdeu no tempo, mas pelo que não poderá se capturar do futuro. Já não é possível representar uma arte que não seja crepuscular, uma linguagem que não se abandone aos últimos gestos de expressão que lhe cabem, daí ser todo este filme um movimento em torno da Noite, um cotejo da madrugada e das horas que não se sustentam em um relógio. Autoconsciência da caixa preta (TV) em relação à sala escura (cinema), dois espaços de pura treva, caso não nasça a imagem.
Não por acaso, é no meio da noite a cena em que o diretor do filme não mais resiste ao peso das circunstâncias (de ser personagem de si mesmo, de ser mais uma peça no maquinário que tenta conduzir): num movimento quase teatral, ele estaca no meio de um cômodo e desaba os ombros, pende a cabeça, parecendo desligar-se como um autômato a que escapou toda energia. Da mesma forma, vemos desligarem algumas das questões que outrora ocuparam Godard, acentuando-se a sua nova compreensão de estética, o renovado anseio por saber tudo o que pode um filme. É outra a revolução que podemos esperar a partir daqui, mais amplo o combate, o esforço de lidar com artes que agonizam. Num filme que anoitece, a ironia é urgente: reacende-se a busca pela luz.
***Texto originalmente publicado no Catálogo CCBB
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