On s'est Tous Défilé (Jean-Luc Godard, 1988)

Apostando na desconstrução de sentidos já no primeiro quadro deste ...Défilé, Godard é rápido em instaurar e revirar do avesso toda a memória de um escritor que talvez seja a mais próxima identidade do cineasta no domínio literário. Se considerarmos o gênio de Mallarmé diante da página em branco, assim como seu deslumbramento pelas tecnologias tipográficas e a abertura criativa que não hierarquiza as palavras, mas lida com elas em pé de igualdade e extrema curiosidade, em constante estado de invenção, rapidamente perceberemos que Godard não deixa de atualizar para o vídeo diversas questões colocadas pelo simbolista no final do séc. XIX, em seu particular tratamento semântico da imagem e do som. A substituição operada na abertura do filme sobre o verso mais emblemático do poeta (troca-se o acaso que jamais será abalado por um lance de dados, por outro que sempre se abalará), logo ultrapassa o nível linguístico para ecoar em planos e enquadramentos originalmente publicitários, ou de finalidades quaisquer, que agora encarnam – ilustrar seria pouco – uma troca mais plena de corpos da linguagem. Movimentos se dilatando, refrãos melódicos se intercalando, oratória poética do próprio Godard minando a inusitada colagem de cenas e gestos que já não guardam referente alheio ao que simplesmente toca as imagens, oferta-se aqui um curta que não poderia estar mais bem encaixado na filmografia de seu autor, senão no pródigo ano de 1988, ponto de virada, recomeço ensaiado nos oito anos precedentes. É significativo voltar um século para localizar em Mallarmé alguém que já compunha suas Histoire(s), seu eterno ‘livro por vir’ que Blanchot tão bem batizou ante a impossibilidade de finalização. Não há imagem que Godard finalize, não há tela que deixe de permanecer branca em suas mãos e olhar. Neste sentido, ...Défilé é o apagamento, a limpeza de página, o canto de anunciação que perpetua a espera do ‘filme por vir’.

***Texto originalmente publicado no Catálogo CCBB

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