O Jogo das Contas de Vidro

Dos maiores anseios que assaltam o personagem de José Servo, protagonista do romance que rendeu o Nobel a Hermann Hesse, está a vontade de realidade, o extremo desejo de ultrapassar o conhecimento dos livros e das artes, de tudo o que motiva a experiência particular no Grande Jogo que rege sua função dentro da sociedade futurista descrita pelo texto. Ele busca um nível de real semelhante ao de uma violenta dor física (“uma forte dor de dentes que parece concentrar em nossos maxilares todas as tensões, sofrimentos e conflitos do universo”) ou um surpreendente fenômeno natural que não tolera a menor sombra de dúvida, pois está arrebentando de realidade. “O que empresta a essas vivências o ímpeto e a força de persuasão não é o seu coeficiente de verdade, origem sublime, divindade ou coisa parecida, mas a sua realidade.”

Encerro minha leitura da obra num momento muito particular da vida, de transição dentro da experiência acadêmica e a um passo, efetivamente (assim espero), da docência. Creio que não poderia ter chegado ao livro em ocasião mais oportuna. Poucas críticas podem ser mais contundentes, na literatura, ao conhecimento científico e sistema das universidades (“mundo artificial, esterilizado, academicamente podado, apenas um mundo pela metade, um mundo fictício no qual vós covardemente vegetais, um mundo sem vícios, sem paixões, sem seiva nem sal...”), e por mais que eu esteja convicto da carreira que escolho e goste muito das tradições e sacralidades, não posso deixar de reconhecer uma acentuada carência de pathos, dentro deste futuro, contra a qual me caberá lutar contra.

Prossigo pela Universidade não pelo que ela me dá, mas pelo que posso dar a ela, pelo papel que me cabe junto aos que também procuram a realidade. Para que a minha própria realidade não se arrebente somente durante as páginas de um romance (pois em Hesse eu sou rompido, constantemente reformulado), mas que se expanda, contamine, entusiasme a outros. Minha vontade, diante de um livro dessa grandeza, é justamente almejar uma troca mais profunda, recomendá-lo a amigos como uma experiência que não pode deixar de ser vivida; nisso, uma vontade ‘professoral’, na mais digna definição do termo, eu suponho. Fluí as palavras de Hesse continuamente assolado pela consciência de que estava diante de alguém que viveu, com toda a carga que pode caber na simplicidade do verbo, simplesmente viveu. Conhecendo de perto os ossos de seu ofício, sobrevivendo por eles, prolongando sua existência em seu personagem, que diz: “tudo o que denominamos ação do espírito, obra de arte ou espírito objetivado são fechos, resultados finais de uma luta pela purificação e libertação; são, por assim dizer, erupções do tempo no intemporal, e, na maioria dos casos, as obras mais perfeitas são aquelas que não deixam suspeitar as lutas e os combates que as predeceram.”

Eu suspeitei a luta. Virei cada página de O Jogo das Contas de Vidro, visualizando seu autor na mais plena maturidade de vida, enfrentando as páginas, os traços, ansioso por justificar a vocação. Não num sentido que o diminua, mas num que o guarde em minha memória como o rosto de um bom professor, daqueles a quem devemos tudo, para sempre.

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