Iniciei a última semana certo de que lhe escreveria algo por estes dias, pois já havia separado seus livros para serem a minha leitura da vez. De imediato, comecei a recordar o meu primeiro encontro com sua escrita, no ano passado, através dos empréstimos com as queridas Suyene e Simone, de seus romances Mosaico de Rancores e O Enterro do Lobo Branco. Obviamente me lembrei das reações que me causaram (especialmente o segundo, que pessoalmente lhe narrei, quando nos vimos em SP, ali pelo mês de Outubro), mas agora prefiro destacar as condições de leitura, que penso não lhe ter dito muito bem. Sabe, eu amo guardar minhas memórias de leitura num pacotinho completo, às vezes importando mais me lembrar como foi o processo de vivência com os livros do que os desdobramentos de seus conteúdos (no que conta muito eu raramente me lembrar dos desfechos em tudo o que leio, parece uma estratégia do inconsciente, para perdurar as leituras ad infinitum).
Bem me lembro como foi abrir o primeiro livro seu que em
minhas mãos caiu, Mosaico de Rancores,
justamente seu romance de estreia. Eu estava em uma clínica médica, à espera da
minha vez na consulta, típico momento em que leio volumosas quantidades de
páginas, seja pela demora a ser atendido, como pelo grau de concentração a que
consigo chegar, no esforço de não sofrer junto com alguns sofrimentos ao lado.
Lá estava com seu livro em mãos, quando começo a virar as páginas e percebo que
este ato mecânico, tão amado por leitores compulsivos, não estava se
completando em seu real significado. As páginas começaram a virar, sem
acompanhar com isso um real atravessamento das palavras, daquele sincopado de
frases que iam me desferindo delicados mas determinados golpes. Foi
praticamente em vão. Quando voltei para casa e retomei o livro, precisei
fechá-lo para tentar a efetiva abertura, ou melhor, precisei zerá-lo. Voltei
para a capa e, da primeira página, tentei novamente avançar. O mesmo processo
se repetiu mais duas ou três vezes: lidas algumas poucas páginas, eu retornava
para o início e começava de novo, como se procurasse a tonalidade certa em meus
olhos, para sentir que a estava realmente lendo. Não sei precisar em qual
tentativa eu finalmente me rendi, mas a hora chegou em que as páginas
continuaram a virar dentro de uma mecânica própria, que já parecia independer
da minha disposição pelo gesto. Disposição esta que se mediria logicamente pela
qualidade do meu raciocínio em cima de suas palavras, mas que, longe disso, na
verdade abdicava quase completamente de um entendimento padrão. Foi quando
descobri que virar uma página de Márcia Barbieri não significa ou prenuncia
qualquer expectativa de continuidade. Virar uma página sua é sempre voltar ao
zero, reduzir-se ao neutro, encostar numa espécie de condição ôntica que abre
mão de tudo, fazendo-me deparar com um cosmos em permanente estado de criação.
Daí, para ler O
Enterro do Lobo Branco, foi um salto mais planejado. Imediatamente incluído
no rol de livros que só me atrevo a abrir em minha alcova (no que a listo em
uma tradição de autores, de Sade a Hilda, que sempre me pedem o silêncio mais
pleno), seja pelo isolamento como também pela escolha de dias que me permitam
um fôlego maior de tempo, neste segundo livro eu já havia vencido a insegurança
das páginas viradas. E em dois dias, já familiarizado com a desfamiliarização
de suas letras, concluí o que gerou em mim uma espécie de violação existencial,
experiência quase fisicamente dolorosa, aos moldes do que já vivi com os
autores mencionados no parêntese acima. O que me leva, um semestre depois,
nesta semana de isolamento global, a reencontrá-la nos romances que me
faltavam: A Puta e A Casa das Aranhas.
Se os primeiros textos seus aos quais tive acesso foram
suficientes para entender que jamais precisarei entendê-la, pois saborear a
imensidão de seu texto basta, agora eu sinto que cheguei mais perto de
localizar a sua obra no painel literário que construo. Lugar que acompanha,
inclusive, as estranhas sensações provadas durante estes dias de quarentena, no
Brasil e no mundo, por conta do Coronavírus. Como não encontrar profecia na
primeira página de seu último livro? “Ninguém
ousava deixar suas casas, as ruas estavam escuras e desertas, os assassinos
enfurnados em seus cubículos, escutávamos apenas o escarcéu dos gatos nos
telhados (...), o latido incessante dos cachorros tentando nos alertar para um
perigo invisível e os guinchados dos ratos esfomeados no esgoto.” (p. 15) Pois
é disso que trata toda a sua literatura, ou melhor, é aí que ela vive: em uma
zona posterior a tudo, ao mundo, aos homens, à própria palavra. A atmosfera
apocalíptica situada em A Puta,
confirma o que pressenti antes com a necessidade de tudo zerar para poder ler: “Nossa antiga civilização entrou em declínio
e se extinguiu, tivemos que recomeçar do zero.” (p. 42). Pelo que hoje
posso afirmar a qualquer pessoa que me perguntar sobre você e seus livros: sim, para ler a Márcia você precisa destruir o mundo, pelo
menos todas as compreensões e certezas que pensava ter, seja em relação ao
humano como na própria lida com o verbo. Abrir qualquer romance de Márcia é
recomeçar do zero.
E por isso eu decidi fazer destas minhas palavras, não
apenas uma resposta íntima, de um leitor para uma escritora, mas avançá-la, de
escritor para leitora, de escritor para escritora, de humanidade para
humanidade. Uma carta pública, para que mais olhos a saibam, que mais ouvidos a
sigam, que mais corpos a encontrem. Márcia, eu não conheço na literatura
brasileira de hoje outra voz que tenha alcançado tamanha liberdade nisso que
nos move a fazer livros. Localizar sua escrita redimensiona todos os meus
discursos, crenças e descrenças para com a contemporaneidade das letras. Você
me fortalece. Você eleva a produção literária no Brasil do séc. XXI a um
patamar como não se provava, pelo menos, desde a morte de Hilda. E como lhe sou
grato por isso.
Hoje cedo escrevi algumas palavras sobre Clarice, a minha, a
nossa. Disse algo sobre absorvê-la como a um medicamento. O que me leva de
volta ao espaço onde meus olhos leram as suas primeiras frases. Cada um de seus
livros me faz voltar àquela espera médica, com a certeza de encontrar em você o
tratamento exato para os meus anseios. E uma curiosidade final: quando fui
guardar os seus livros de volta em minha estante, a ordem alfabética fez com
que A Casa das Aranhas caísse ao lado
de O Mágico de Oz (Frank BAUM, logo
após BARBIERI, em minha prateleira). Fiquei olhando para os livros, lado a
lado, com um sorriso nos lábios. Seus romances me levam ao exato lugar em que
um dia, na infância, aquele mágico me levou. Um lugar onde encontro a mais plena
liberdade, o sabor da fantasia e dos desejos, a certeza de que são em obras assim onde
sempre continuarei motivando os meus dias, as minhas letras, quem eu sou.
Obrigado,
Nando
Crítica espetacular à enorme escritora Márcia Barbieri. Li o livro " A puta" e nao poderia concordar mais com as suas pslavras. Abraço Ana Maria Oliveira
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