A Descoberta do Mundo (Clarice Lispector)

Há exatamente 9 meses eu abria a primeira capa deste livro. Mantive-o na estante por anos, sendo um daqueles que consultava de vez em quando, sem querer atravessá-lo por inteiro, para manter a sensação de que sempre haveria algo inédito para os meus olhos, em Clarice. Mas há 9 meses eu precisei quebrar o ritual de adiamento. Comecei a lê-lo no carro funerário, durante o trajeto que acompanhei para o translado do corpo de vovó, rumo a Pernambuco. Precisava me agarrar em algo, para além de Deus, de minha dor e do buraco que levava no peito.
A hora: 3h30 da madrugada. A viagem: 7 horas de duração. Durante a viagem, as primeiras 24 horas completas do óbito, o primeiro dia do meu novo estado de vida. O princípio da descoberta de que em toda morte também se nasce. Lembro-me de que segui naquele carro, absorvendo palavras em goles densos, lentos, como quando experimentamos aquele sabor nunca anunciado, de maneira calculada para não engasgar, e ao mesmo tempo perceber bem fundo a dimensão do gosto.
Se Bachelard é aquele que nos recorda ser a literatura uma homeopatia da angústia, entre minhas imagens favoritas e mais repetidas em aulas, hoje posso guardar “A Descoberta do Mundo” como a fórmula mais controlada, medida e exata para mim. Com o passar dos dias, continuei em todo o segundo semestre de 2019, lendo-o em gotas, uma ou duas páginas por lua, sem a pressa do fim. 2020 entrou, sem me trazer aquela determinação de encerrar as minhas leituras pregressas, sem a necessidade do marco zero. Como se a cada dia, a cada crônica, todo o meu ser zerasse naturalmente, e um novo calendário surgisse.
Nesta semana, finalmente, fecho sua contracapa. E ao me dar conta de que 9 meses foram completos nestas quase 500 páginas, o tempo de uma gestação, entendo que mais uma vez renasço. E em cada palavra que me medicou, que me tratou, reaprendi que o ineditismo dos olhos continua em todo amanhecer. Deus, a dor e o buraco também continuam em mim. Uma harmonia nova, em adaptação perpétua, para a qual as palavras sempre serão o ombro mais certo, o travesseiro mais quieto. Como sou grato por isso.

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