50 anos de G.H.

Em homenagem aos 50 anos de publicação de A Paixão Segundo G.H., a matéria de capa do Suplemento Pernambuco, este mês, foi dedicada ao registro de leituras muito particulares ao livro. A jornalista Julya Vasconcelos assinou a matéria “TodoCuidado com Os Sintomas da Paixão” (link), reunindo comentários de diversos leitores e estudiosos de Clarice. Na oportunidade, também tive a honra de ser ouvido por Julya e guardo com carinho a entrevista que respondi e que também me ajudou a refletir um pouco mais de minha própria jornada com a escritora e sua obra. 


1 – Primeiramente, eu queria entender um pouco da tua pesquisa a respeito de G.H, porque infelizmente não tive tempo de ler seus artigos e tese (está disponível on line?). Podes explicá-la, em linhas gerais, a sua visão sobre o livro? 

Minha tese (ainda não está disponível, defendi há 04 meses) dedicou uma leitura teopoética ao romance. Trata-se de uma teoria que une Teologia e Literatura para interpretar obras que tocam em conceitos de ordem sagrada/religiosa. Não tenho dúvida de que é uma chave essencial para o texto de Clarice que, desde o título, evoca o imaginário bíblico, no símbolo da Paixão de Cristo.
Minha pesquisa, ou seja, minha visão sobre o livro, focou a noção de Desamparo sofrido pela protagonista, que repete constantemente este sentimento à luz do desamparo cristão (lama sabactani); esforcei-me por refletir as consequências deste intertexto, tão acima do tempo histórico, para entender melhor a situação humana de um século (XX) que é totalmente marcado pelo mal-estar, pelo desamparo, ao menos desde que a consciência psicanalítica esclareceu ainda mais as nossas limitações. Mas não posso restringir ‘minha visão’ sobre o livro dentro de apenas uma perspectiva. Por exemplo, estou agora mesmo envolvido em outra pesquisa a respeito de uma inquietação diversa do livro, mais ligada a critérios narrativos de espaço e tempo. A grandeza da obra está, justamente, em mediar todos os seus anseios no cerne da linguagem, nos problemas do texto, da palavra. Isto é Literatura, isto é o inesgotável.


2 - Tens alguma sugestão do que significam as iniciais da personagem?

Não. Nem penso que deva ter. Clarice não foi escritora de meias palavras, ou de joguinhos semânticos/simbólicos. Já li inúmeras interpretações destas iniciais, das mais sérias às ridículas, e creio que todas ‘perderam tempo’ lidando com uma coisa que é muita clara e bem resolvida pela autora: uma palavra é uma palavra, uma letra é uma letra, mais do que isso fica com a imaginação de cada um e, tenho certeza, Clarice não daria a mínima para especulações que fossem além.


3 - O que é a paixão, segundo G.H?

É o que não se pode responder, além do livro.


4 - Para você, o fato de ter sido publicado em 1964 imprime alguma força política ao livro? Alguns pesquisadores enxergam uma ideia de conflito de classes ou até mesmo de desestabilização da identidade de G.H. como algo revolucionário, como prática de uma liberdade, etc.

É impossível que a literatura não espelhe o seu tempo, seu contexto histórico. Para mim, G.H. é um dos marcos definitivos da resistência política nas letras brasileiras. Lourival Holanda, professor e amigo, falou certa vez de escritores que criam a pátria em seu imaginário e linguagem; obviamente, ele destacou Clarice, pois o dilaceramento de suas letras é a causa primeira do exílio interior que sofrem seus personagens. Nela, a linguagem é o único espaço, o chão que resta, e não por acaso G.H. ser reconhecido como um ponto culminante de sua carreira. Como disse há pouco, é um livro sobre o Desamparo, em todas as suas formas e consequências, logo, também um livro sobre o desamparo político e social do brasileiro, narrado por uma personagem carioca que já nem pode se entender ou explicar dentro de um parâmetro geográfico, estabelecer fronteiras. No final das contas, um livro sobre a linguagem e sobre o silêncio, sobre o falar e o calar. Acho que nada poderia estar mais dentro do ‘espírito de 64’ do que isto.


5 - Eu estou perguntando, mesmo para os estudiosos da obra, como foi o primeiro contato com o livro, de que forma foram tocados por ele, que paixões foram despertadas, que sintomas observados. José Castello, por exemplo, disse ter ficado doente durante a leitura, e que o médico disse que "era apenas uma paixonite". Você poderia falar um pouco como chegou a Clarice, ao livro, e como foi afetado, pessoalmente, por ele?

Na verdade, meu primeiro amor com Clarice está em “Água Viva”. Nenhum outro de seus livros, e quase nada em toda a literatura, me toca como ele, diz tanto sobre mim. Foi ele meu primeiro alvo de pesquisa, no mestrado. Mas logo precisei deixá-lo de lado, num sentido científico, porque, sendo um livro tão a respeito de mim mesmo, senti que já estava ‘me expondo’ demais, rsrsrs
Creio que G.H. se tornou, desde então, minha principal fonte de estudos porque, na verdade, já cheguei a ele com olhos de pesquisador. Foi um livro que ‘demorei’ para ler (por mais que a literatura nunca se atrase), talvez por prever um universo maior, mais complexo. Acredito que nunca fiz uma leitura ‘impressionista’ dele. Por um lado, isso desloca minha relação afetiva (há quem diga que é um dos livros de que falo sem a paixão habitual, por causa deste distanciamento), mas por outro, isso me deixa completamente aprisionado ao livro. Já se vão 06 anos estudando e tudo indica que não terminarei tão cedo. Bom, Clarice nunca termina...


6 - Queria saber o porquê de GH despertar tantas leituras distintas, tantas paixões. Lembro de uma entrevista de (se me lembro bem) uma pesquisadora canadense, que dizia que para ler Clarice ela havia desenvolvido um "método telepático". Pensei também na força do leitor, que segura a mão de G.H no seu percurso. Enfim, essa me pareceu uma questão central pra matéria: o que há nesse livro que move tanta paixão?

Minha resposta pode cair no óbvio, mas não tenho outra: isto acontece porque G.H. é Literatura. Simples assim. Infinito assim. A literatura se consuma quando apaixona, quando nos deixa sem saída, quando nos arranca do chão justamente para fazer sentir que o chão existe. A imagem constante da mão, no livro, também é uma das que me comove mais intensamente, talvez porque veja ligações com o Sagrado nela, uma espécie de mão divina, de mão que escreve o texto e a vida, mas que também pode se soltar, que pode apagar o que escreveu. É o limite entre a segurança e o abandono, isto que não permite a ninguém uma ‘leitura ilesa’, que faz todos nós sairmos machucados do livro, sabendo que somente num retorno ao mesmo poderemos encontrar cura.

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