Carta Aberta à Fernanda Teixeira Ribeiro

Fernanda,

Já se vão três semanas exatas desde que eu concluí a leitura de seu livro, Cantagalo, e que tive a oportunidade de conhecê-la, ainda que remotamente, durante um encontro do Pacto Literário. Sou muito grato pela sua gentileza e interação logo após o debate, na rede social, colocando-se à disposição para conversar mais, quando lhe respondi que estava saindo para almoçar em minha mãe e logo mais lhe escreveria melhor, pois realmente desejava fazer isso. Muita gente pode pensar que três semanas não sejam um sinônimo adequado para ‘logo’, mas convenhamos, quantas vezes não precisamos de mais vida para só então escrever? Como brinquei com você naquele sábado: de escritor para escritora, de xará para xará, de um nascido em 1984 para uma nascida em 1984, creio que tenhamos coincidências suficientes para nos permitirmos uma compreensão mútua de que a relação entre o Tempo e a Escrita não se pode medir pacificamente pelo relógio ou calendário. Pelo menos o seu livro me permite concluir que você tem opinião parecida com a minha.

Pois bem, de volta de alguns almoços, retorno aqui, e faço isso publicamente não apenas porque há muito precisava reativar meu blog, mas porque assim alcanço mais olhares para a sua obra, objetivo que certamente carregarei por muito tempo, na manutenção do prazer que me toma em, conhecendo um grande livro, ampliá-lo em reconhecimento por mais pares. Por isso começo repetindo algo que externei lá no debate: o seu livro é Grande, Fernanda. A satisfação de encontrar uma publicação de estreia com o nível do que você nos entrega é mesmo de dar gosto e renovar esperanças para com a literatura brasileira contemporânea, que vai muito bem e obrigado. Mas, sabe, apesar de bons encantos com nossas letras, também não posso deixar de sentir algumas preguiças em relação ao que o mercado editorial elege, aos títulos que mais circulam, não apenas comercialmente, mas nas positivações críticas, assim como em prêmios e festivais. Confesso estar muito curioso por acompanhar a trajetória que o seu livro trilhará nesse contexto. Romances mais ambiciosos com questões historiográficas, por mais que ocupem a maior parte do cânone brasileiro, não despontam mais como favoritos do mercado, que parece cada dia mais avesso a essa tradição dos ‘romanções’ (para retomar um termo que tão carinhosamente repetimos com o pessoal do Pacto). Que um dos primeiros nomes citados por você, ao destacar de seu arcabouço de memórias e referências, tenha sido o de Érico Veríssimo, foi algo que me deixou especialmente feliz. Quantos escritores (e especialmente escritoras) andam citando Veríssimo, hoje em dia? Será que ainda temos tempo para ler os romanções dele, com a aceleração da vida e dos hábitos de leitura?

Uma rápida explicação sobre o último parêntese: como leitor, minhas preferências tendem a se voltar para as autorias femininas; como pesquisador especializado em Clarice Lispector, não por acaso, sou levado a encontrar com enorme frequência caminhos de subjetividade nas autoras contemporâneas que, invariavelmente, prosseguem uma linearidade que encontrou um de seus apogeus em quem nos legou G.H. É muito difícil escrever como Clarice, mas parece que o maior elogio, e por isso uma das maiores buscas, que vejo circular na recepção das novas escritoras se inclina a pontos de comparação com ela, ou com as tradições que ela ajudou a estabelecer, no sentido mesmo de quebrar tradições. Daí que um dos maiores elogios que faço ao seu Cantagalo, com o conhecimento de causa que me diz respeito, completa-se pela afirmação de que o seu livro é Grande, sem precisar me lembrar de Clarice. Não é um livro que pretenda maiores rompimentos estéticos, revelações de desdobramento intimista, tensionamentos com os elementos mais básicos da narrativa romanesca. Pelo contrário, é um livro que assume o seu lugar, sem medo, dentro de um modus operandi rigorosamente clássico, manobrando com muita perspicácia técnicas refinadas de narração. Pode ter certeza, em alguma próxima aula que eu precise explicar o funcionamento de uma analepse, será Cantagalo o meu exemplo maior.

Preciso também registrar uma gratidão específica a dois capítulos de seu livro: o 2º e o 60º. Primeiramente por serem os de maior fôlego em todo o romance, exigindo maior número de páginas, um com dez, outro com nove. Ou seja, não exatamente capítulos longos, mas capítulos que me permitem uma percepção mais atenta ao que você ainda pode fazer, dentro do gênero romanesco. Uma das preguiças que sinto com a literatura contemporânea está bem nessa urgência de narrar em capítulos cada vez menores, como se as síndromes de uma geração tik tok precisassem redefinir também as quantidades de palavras que são passíveis de assimilação dentro de uma sociedade cada vez mais incapaz de se concentrar por muito tempo em alguma coisa (há quem reclame até mesmo de uma frase longa como essa). Nesse sentido, apenas em folhear muitos livros já sinto preguiça. E eu confesso, Fernanda, quando folheei o seu, tive algum receio, pois 104 capítulos obviamente obrigaram à diminuição de vários deles, com alguns ganhando nada além de uma página. Mas como é bom confirmar que a literatura e a arte não têm fórmulas fixas, e que a escrita ultrapassa em absoluto medidas quantitativas de apreensão. Enquanto na maioria dos livros preguiçosos que encontro com capítulos breves, chega mesmo a ser quase possível ouvir as recomendações de “enxugue mais, reduza, corte, o público não tem tempo”, o que encontro em Cantagalo não é uma motivação regida pela lógica das redes sociais, mas um modo narrativo que também remonta aos nossos cânones. Afinal, não é preciso muita sagacidade para distinguir que um capítulo breve de Machado de Assis, daqueles mais minúsculos com que ele jogou, não tem absolutamente nenhuma relação com os micro capítulos que hoje abundam no universo livreiro. Cantagalo está para Machado, como os mais vendidos estão para os stories que viralizam e logo se esquecem. E foram esses dois capítulos maiores que me deram prova de que os seus menores capítulos também brilham porque você sabe muito bem o que deseja fazer. Ok, saber o que se deseja não é alcançar o que se deseja, por isso continuamos escrevendo e dizendo de novo e repetindo mais uma vez. Mas saber já é um passo definitivo, e o seu livro me diz que você sabe.

A gratidão pelo capítulo 60 também destaca uma curiosidade – a quem não curte spoiler, pode pular este parágrafo: há algum tempo eu não sentia uma rasteira tão bem aplicada por uma escritora às minhas convicções de leitor. Sério, eu ri alto quando descobri, muito adiante, que o recurso das duas cartas escritas por personagens diferentes era trapaça de uma só personagem. Enquanto lia o capítulo eu cheguei a verbalizar algo nesse sentido (adoro conversar com a árvore de meu vizinho; ele não sabe, mas ela também é minha e também lê comigo a maioria dos livros que devoro – ela me pediu para dizer que adorou seu livro e por isso fez questão de aparecer na foto abaixo), ridiculamente convencido que estava, dizendo: “gente, que escritora incrível, ela realmente consegue fazer duas cartas de dois personagens distintos terem tonalidades e texturas completamente diferentes – vou guardar isso como exemplo para uma aula, também...” Olha, eu caí do cavalo quando descobri que o encadeamento das cartas era uma farsa, e como eu gosto que me derrubem assim, com a cara no chão, esfregando nas minhas certezas que nada é definitivamente certo em termos de linguagem. Obrigado por me enganar tão bem.

 

E obrigado por tantas frases eternas! Longe de esgotar minhas favoritas, preciso copiar aqui:

“quem não segura a língua vira escravo da palavra” (p. 12)

“sorvia a palavra, testava na língua, ria e assentia, como se recebesse um mistério” (p. 20)

“os olhos custam a ver o que a cabeça ainda não conhece; o contrário também, vemos com clareza o que já se pretende enxergar” (p. 96)

“os olhos e os ouvidos pregam onde está o coração [...] é impossível não aprender as coisas bonitas – elas ecoam no pensamento” (p. 105)

“se olhar todos os dias para um canteiro estéril, ele floresce; a flor rebenta no jardim e dentro da gente ao mesmo tempo. Coisas de saber sem entender.” (p. 176)

“estar vivo é agulha na polpa do dedo” (p. 181)

“as palavras, parece que acham gruta no corpo da gente, ponta de calcário pra todo o sempre” (p. 194)

“se não amarramos as lembranças em estacas do hoje, elas viram navios” (p. 203)

“As mães ficam mais vivas depois da morte.” (p. 206)

“você vai ver que praga são os bons livros: vai deixar de dormir à noite por causa deles, de dia não sairão da sua cabeça. Livros bons são como amantes.” (p. 250)

 

Finalmente, há também aquele fragmento que li durante o debate, e que agora ganha um sentido muito maior para mim: “escrever cartas, Percebe como as escrevo mais para mim mesma do que para meu irmão? As dele também são assim, acho que todas as cartas e livros o são, conversa consigo próprio.” (p. 72) É isto, eu escrevi essa carta aberta mais para mim mesmo, estou aqui conversando comigo, mas tudo isso por causa de seu livro. Como completa a personagem, na mesma página: “As palavras sem você ao meu lado seriam outras.” Por isso, neste desfecho de gratidão escrita, preciso acrescentar que a importância do seu livro neste nosso imenso e tão repleto de vidas mês de Maio, também me foi muito marcante por estar, daqui de meu quarto, em processo criativo para um novo livro. Lembro que foi um desafio conceder pausas ao seu livro para obedecer à disciplina autoimposta de que em determinadas horas era eu quem precisava escrever, que era o meu livro que precisava avançar. E pelo menos durante os três dias em que estive mergulhado no Cantagalo, o meu livro em processo também foi um livro de Fernanda. Lembro-me de que lia um parágrafo seu, tão bem estruturado e conduzido, e a minha régua para com os meus próprios parágrafos em produção subia um pouco. Foi incrível variar as leituras que atravessava, no caso, aquelas que conscientemente ecoavam com propósito dentro do que eu escrevia (Clarice e Cortázar, principalmente), com o seu livro, tão diferente, tão pleno, tão (re)direcionador para mim. Não tenho como medir o impacto disso, mas a partir de Cantagalo, como acontece sempre com os grandes livros que lemos – nós, que escrevemos –, os meus livros também serão seus e terão você, Fernanda.

Obrigado,

Nando

 

3 comentários:

  1. Querido Nando,

    Quando li sua carta estava em BH, dando conta dos lançamentos do Cantagalo no meu estado. Nesse mundo virtual que possibilita (e não raro exige) retornos imediatos, perdoe o tempo de uma semana para a resposta — não queria restringi-la a uma sequência de emojis de corações, apesar de simbolizarem o que senti com a leitura da sua carta.

    Eu tenho ficado em êxtase com essa coisa de ser lida. A trinca escrever-publicar-chegar de fato aos leitores não é linear nem fácil. Você que é escritor e pesquisador do campo da literatura sabe. O Cantagalo tem recebido espaço na mídia tradicional e atenção da crítica especializada e dos livreiros para além do esperado para uma autora iniciante, o que me traz satisfação, é claro. Mas o contato direto, mesmo virtual, com alguns leitores me dá muito mais alegria — e me revela aspectos do livro que eu não imaginava.

    Percebo que há leitores e leitores. Há aqueles que ficam na primeira camada do texto, no melhor sentido; seguem o fluxo do enredo, se irritam e se divertem e partem pra outra logo terminam o livro (não estou criticando, de forma alguma, faço muito). Outros olham do topo da escada e tentam entrever os porquês do texto: a “crítica social”, o que o texto “ensina”, empenhados em identificar (e julgar) “intenções” do autor. Acho que estão cada vez mais comuns no meio especializado. Há uma outra categoria, no entanto, que estou gostando de descobrir: os leitores, como você, que furam a camada do enredo, a camada social e política e descem os degraus para o porão. Reconhecem não apenas técnica e repertório, como também a bruxaria do texto. Quando digo bruxaria (um leitor querido me ofereceu essa palavra e eu aceitei), me refiro aos sentidos que se constroem e aos rumos que o texto toma, em enredo e em linguagem: a alquimia que acontece apenas durante o processo da escrita. Combinações e possibilidades que brotam do próprio ato de escrever. Inerentes ao percurso e inconcebíveis no planejamento.

    (continuo no próximo comentário)

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  2. Não imagina minha satisfação em vê-lo analisando o Cantagalo duplamente com técnica e sensibilidade, destrinchando aspectos que eu ainda não havia pensado sobre. Os capítulos 2 e 60, curiosamente, foram meus primeiros capítulos. Explico. O 2, inicialmente, foi o primeiro rascunho de todos, um possível primeiro capítulo, uma sucessão de ações que dá as cartas para todos os conflitos que vão acontecer dali em diante. Ficou na gaveta por anos. Foi o começo de tudo. Sem dúvida o que mais me deu trabalho, o mais reeditado, retalhado, refeito. O que me deu receio de as costuras se mostrarem aparentes e grosseiras. O 60, primeiro capítulo da parte III, foi escrito depois de uma pausa relativamente longa na feitura do livro. Mas ali o tom, a linguagem, já tinha sido encontrado. Aqui, divido com você um segredo: eu ainda não sabia que Cantau fingiria ser o irmão, talvez por isso eu tenha caprichado na diferenciação das cartas. Também tomei essa rasteira (adorei sua palavra).

    O 2 e o 60. Você assinalou justamente os capítulos que foram começos, incubadores de ações. Como se esses capítulos maiores estivessem concentrando os dardos para lançar nos capítulos curtos que viriam a seguir. Não sei se acertei na metáfora. Mas você acertou quando distinguiu Machado na estrutura. Folheei Dom Casmurro antes de iniciar esta carta e percebi o quanto o reproduzi no arranjo dos capítulos. Não foi consciente, acho. Tenho me surpreendido em ver leitores especializados apontando com precisão minhas primeiras leituras (e releituras), que eu já não chamaria de referência por não me lembrar bem delas. O consciente apresenta sua versão e o inconsciente ri. O menino é pai do homem, escreveu Machado, antes de Freud estrelar por aqui. As leituras de lá atrás pipocam nas escolhas mais elementares da nossa escrita, estou percebendo. Fico feliz de você ter atentado para o Érico Veríssimo no dia do Pacto, me sinto literariamente abençoada pelos livros brasileiros que estiveram à mão na minha formação como leitora. Acho que se fosse jovem hoje infelizmente estaria lendo a Colleen Hoover. Falta de opção é bom.

    Também gostei da sua observação sobre Clarice. Confesso que ainda não li GH, conheço pouco a Clarice romancista. Apesar de ler Felicidade Clandestina com obsessão desde meus doze anos e ter a impressão que esse conto, sozinho, muito me educou emocionalmente e transparece nas dinâmicas das minhas personagens. A bruxaria da Clarice. Você foi sagaz ao afirmar que existe uma tendência em comparar escritoras com Clarice, pelos motivos que você com conhecimento de causa enumerou. Mulheres construindo “romanções” no Brasil parecem exceção. Apesar de haver Ana Maria Gonçalves, de haver Maria José Dupré.

    (continuo no próximo comentário)

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  3. Quando você elegeu algumas frases do Cantagalo, lembro-me do dia do Pacto Literário. Você destacou a frase “As mães ficam mais vivas depois de mortas”. Naquela mesma semana, outras duas pessoas haviam fotografado essa frase no livro e me enviado, pois também ressoou nelas. Uma me perguntou como eu pude ter escrito a frase se ainda tenho mãe. Lembro-me também que você relatou a sensação de estar acompanhado enquanto lia o livro e eu conto para você intimamente, nesse espaço público, mas também menos exposto que é um blog, que muitas vezes tive a impressão de não escrever só. Não digo em um sentido místico, mas no sentido de haver conseguido vez ou outra acessar uma egrégora de ideias, coletivas e disponíveis.

    Vejo o Cantagalo como uma junção de técnica nos detalhes (muita escolha de palavra, edição, reescrita, escuta dos personagens) e de se deixar levar nas grandes escolhas: enredo e estrutura. Acho que foi Freud quem afirmou que as grandes escolhas são inconscientes. Não imagina quanto fico feliz de vê-lo dizer que tem minha voz de autora a seu lado enquanto escreve seu livro. Fico lisonjeada de saber não só um escritor, mas um estudioso da literatura, professor universitário, dedicando tempo e atenção (tão raros!) ao Cantagalo, ainda mais enquanto escreve o próprio romance. A julgar por seu repertório e sensibilidade, arrisco dizer que vem algo muito bom, estou ansiosa para ler. Muito obrigada por suas palavras, foram um presente.

    Grande abraço!

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