Le Champignon des Carpathes (Jean-Claude Biette, 1990)



Que eu saiba, ou tenha notícia, nenhum filme de Jean-Claude Biette passou até agora em Portugal. Não são de resto muitos, para um cineasta que se estreou (na curta metragem) há mais de 30 anos, em 1961. Mas apenas em 1977, Biette conseguiu os meios para passar à longa metragem com “Le Théatre des Matières”, que veremos 2ª feira. Depois, cinco anos de intervalo e “Loin de Manhattan”. Uma participação no filme coletivo “L’Archipel des Amours” (1983) e mais sete anos de intervalo até chegar este cogumelo dos Cárpatos. Depois dele, há já uma quarta longa metragem (de que não se conseguiu cópia): “Chasse Gardée”, estreada em 1991. Por agora, a proposta de um “Robinson Crusoe”, a rodar em Portugal, co-produzido por Paulo Branco (já co-produtor de “Loin de Manhattan”).

Um realizador “à Bresson” ou “à Tati” que pensa longamente os seus filmes e longamente os amadurece, com rodagens igualmente longas? Nesse sentido, não. Apenas um realizador (e é o caso de tantos dos nomes mais válidos do atual cinema francês) que não transige com os chamados “gostos do público”, com o que Rivette chama “filmes cinzentos” e prossegue uma obra vincadamente pessoal, longe dos padrões dominantes das “cinzentas” décadas em que filmou. Por isso mesmo, os seus filmes não aguçaram o apetite a qualquer distribuidor português. Biette, como tantos dos seus companheiros de aventura (Jacques Davila, Gérard Frot-Courtaz, Jean-Claude Guiguet) permanece à margem e na margem. À exceção de algumas “capelas” a sua obra não suscita qualquer culto. E no entanto são estes cineastas os homens da “resistência” de que falava Daney, os homens que continuam a procurar a “grandeza na pequenez”. Deles se continua a fiar a gloriosa herança das gerações da “nova vaga” e dos idos dos anos 60. Se os “antepassados” tiveram a sorte de viver tempos menos estúpidos (e graças ao nome que então fizeram puderam continuar as carreiras nos ciclos de prestígio) a esta geração coube-lhe o ostracismo. Por agora, são eles que fazem o papel de “ET” num “planeta” que deixou de os reconhecer e em que deixaram de se reconhecer. Um dia virá – e graças a eles virá – em que os filmes que fazem serão redescobertos e não teremos que corar tanto com tanta abdicação e tanta traição.

“Le Champignon des Carpathes” é emblemático dessa insularidade. No Positif chamam-lhe um filme exangue. Quem será ainda capaz de ver o sangue que circula nestas obras? Quem será ainda capaz de acreditar no champignon des Carpathes, a flor que tem todos os poderes, desde que a afastem da luz? Quem pode seguir ainda esta viagem na obscuridade e no mistério? Quem é ainda capaz de sustentar o primado das personagens sobre a “história” e de criar para nós criaturas tão fascinantes como Laura Betti, Patachou ou a Ofélia entorpecida pelas radiações nucleares, pedindo (ou exigindo) ao espectador que estabeleça os nexos entre eles e não os deixando divagar na historiazinha da papinha feita, para entreter e para esquecer? Pode dizer-se ou pensar-se tudo de “Le Champignon des Carpathes”. Dificilmente se poderá negar que este é um filme que nos respeita e nos respeita na medida em que exige de nós uma atenção muito diversa do que nos pedem os traficantes de imagens, ou dos que se servem delas para ilustrar (aos quadradinhos) uma história em que não põem nem uma gota de sangue nem uma gota de leite.

Pense-se, por exemplo, na personagem de Madeleine. Mal a vemos no início (esse início que nos faz pensar num filme de ficção científica) quando junto às ondas e ao mar (que só voltarão no final) foi atingida pelas radiações da explosão de uma central atômica. Depois, saberemos que era ela quem devia interpretar o papel de Ofélia na encenação de Hamlet dirigida por um encenador também crescentemente desadaptado do mundo que o cerca.

Não há, em torno dela, uma intriga, no sentido em que não nos perguntemos durante o filme se ela vai se salvar ou não, se vai ou não voltar aos palcos. Mas vejam-se com atenção esses belíssimos planos crepusculares dela, na casa de saúde. E sem que nenhuma expressa indicação nos seja dada, é impossível não a associarmos profundamente à própria essência do seu personagem. Madeleine é Ofélia, muito mais Ofélia do que se lhe pusessem na boca os diálogos shakespearianos, do que se a fizessem interpretar a cena da loucura ou do que se lhe descrevessem a morte, nos salgueiros. A inocência perdida, a crueldade do destino, os jogos cruzados abatendo-se sobre uma “menina e moça”, um amor dado e por dar, tudo isso e o mais que se possa dizer sobre a Ofélia shakespeariana está nesses planos de Madeleine, longe e perto dos cogumelos dos Cárpatos. E tudo isso só o cinema o pode dar e o pode dar assim. Cerra-se a luz em torno dela e cerra-se para nós a vida.

É muito belo ver um filme em que as imagens errem desta maneira. Não são precisas longas histórias para contar o que nunca se pode contar: o reencontro entre um pai e uma filha, cada um deles vacilando nas certezas da sua identidade ou da sua relação; a tentação de ir buscar algo de novo ao Hamlet e o desespero de encontrar na sala a fazer de teatro sombras dos próprios fantasmas; a incidência de uma catástrofe coletiva em pequenas trajetórias pessoais.

“Cinéma, cinema, ça rime avec quoi?”, pergunta-se a certa altura. E de todas as imagens ficamos com as duas únicas vezes em que a música aparece no filme: a marca fúnebre do Sonho de Uma Noite de Verão, ouvida durante o genérico inicial e a trompa do pastor de Tristão, ouvida no genérico final. Ocultos apelos, como essas notas de música. E fica-nos sobretudo o imenso espaço subterrâneo que atravessa este filme e o faz cada vez mais fugir da luz e encerrar-se em segredos.

João Bénard da Costa (Setembro de 1992)
[transcrito do Tomo I, 1º Vol. de seus Escritos Sobre Cinema]

Carta Aberta à Márcia Barbieri

Márcia,

Iniciei a última semana certo de que lhe escreveria algo por estes dias, pois já havia separado seus livros para serem a minha leitura da vez. De imediato, comecei a recordar o meu primeiro encontro com sua escrita, no ano passado, através dos empréstimos com as queridas Suyene e Simone, de seus romances Mosaico de Rancores e O Enterro do Lobo Branco. Obviamente me lembrei das reações que me causaram (especialmente o segundo, que pessoalmente lhe narrei, quando nos vimos em SP, ali pelo mês de Outubro), mas agora prefiro destacar as condições de leitura, que penso não lhe ter dito muito bem. Sabe, eu amo guardar minhas memórias de leitura num pacotinho completo, às vezes importando mais me lembrar como foi o processo de vivência com os livros do que os desdobramentos de seus conteúdos (no que conta muito eu raramente me lembrar dos desfechos em tudo o que leio, parece uma estratégia do inconsciente, para perdurar as leituras ad infinitum).

Bem me lembro como foi abrir o primeiro livro seu que em minhas mãos caiu, Mosaico de Rancores, justamente seu romance de estreia. Eu estava em uma clínica médica, à espera da minha vez na consulta, típico momento em que leio volumosas quantidades de páginas, seja pela demora a ser atendido, como pelo grau de concentração a que consigo chegar, no esforço de não sofrer junto com alguns sofrimentos ao lado. Lá estava com seu livro em mãos, quando começo a virar as páginas e percebo que este ato mecânico, tão amado por leitores compulsivos, não estava se completando em seu real significado. As páginas começaram a virar, sem acompanhar com isso um real atravessamento das palavras, daquele sincopado de frases que iam me desferindo delicados mas determinados golpes. Foi praticamente em vão. Quando voltei para casa e retomei o livro, precisei fechá-lo para tentar a efetiva abertura, ou melhor, precisei zerá-lo. Voltei para a capa e, da primeira página, tentei novamente avançar. O mesmo processo se repetiu mais duas ou três vezes: lidas algumas poucas páginas, eu retornava para o início e começava de novo, como se procurasse a tonalidade certa em meus olhos, para sentir que a estava realmente lendo. Não sei precisar em qual tentativa eu finalmente me rendi, mas a hora chegou em que as páginas continuaram a virar dentro de uma mecânica própria, que já parecia independer da minha disposição pelo gesto. Disposição esta que se mediria logicamente pela qualidade do meu raciocínio em cima de suas palavras, mas que, longe disso, na verdade abdicava quase completamente de um entendimento padrão. Foi quando descobri que virar uma página de Márcia Barbieri não significa ou prenuncia qualquer expectativa de continuidade. Virar uma página sua é sempre voltar ao zero, reduzir-se ao neutro, encostar numa espécie de condição ôntica que abre mão de tudo, fazendo-me deparar com um cosmos em permanente estado de criação.

Daí, para ler O Enterro do Lobo Branco, foi um salto mais planejado. Imediatamente incluído no rol de livros que só me atrevo a abrir em minha alcova (no que a listo em uma tradição de autores, de Sade a Hilda, que sempre me pedem o silêncio mais pleno), seja pelo isolamento como também pela escolha de dias que me permitam um fôlego maior de tempo, neste segundo livro eu já havia vencido a insegurança das páginas viradas. E em dois dias, já familiarizado com a desfamiliarização de suas letras, concluí o que gerou em mim uma espécie de violação existencial, experiência quase fisicamente dolorosa, aos moldes do que já vivi com os autores mencionados no parêntese acima. O que me leva, um semestre depois, nesta semana de isolamento global, a reencontrá-la nos romances que me faltavam: A Puta e A Casa das Aranhas.

Se os primeiros textos seus aos quais tive acesso foram suficientes para entender que jamais precisarei entendê-la, pois saborear a imensidão de seu texto basta, agora eu sinto que cheguei mais perto de localizar a sua obra no painel literário que construo. Lugar que acompanha, inclusive, as estranhas sensações provadas durante estes dias de quarentena, no Brasil e no mundo, por conta do Coronavírus. Como não encontrar profecia na primeira página de seu último livro? “Ninguém ousava deixar suas casas, as ruas estavam escuras e desertas, os assassinos enfurnados em seus cubículos, escutávamos apenas o escarcéu dos gatos nos telhados (...), o latido incessante dos cachorros tentando nos alertar para um perigo invisível e os guinchados dos ratos esfomeados no esgoto.” (p. 15) Pois é disso que trata toda a sua literatura, ou melhor, é aí que ela vive: em uma zona posterior a tudo, ao mundo, aos homens, à própria palavra. A atmosfera apocalíptica situada em A Puta, confirma o que pressenti antes com a necessidade de tudo zerar para poder ler: “Nossa antiga civilização entrou em declínio e se extinguiu, tivemos que recomeçar do zero.” (p. 42). Pelo que hoje posso afirmar a qualquer pessoa que me perguntar sobre você e seus livros: sim, para ler a Márcia você precisa destruir o mundo, pelo menos todas as compreensões e certezas que pensava ter, seja em relação ao humano como na própria lida com o verbo. Abrir qualquer romance de Márcia é recomeçar do zero.

E por isso eu decidi fazer destas minhas palavras, não apenas uma resposta íntima, de um leitor para uma escritora, mas avançá-la, de escritor para leitora, de escritor para escritora, de humanidade para humanidade. Uma carta pública, para que mais olhos a saibam, que mais ouvidos a sigam, que mais corpos a encontrem. Márcia, eu não conheço na literatura brasileira de hoje outra voz que tenha alcançado tamanha liberdade nisso que nos move a fazer livros. Localizar sua escrita redimensiona todos os meus discursos, crenças e descrenças para com a contemporaneidade das letras. Você me fortalece. Você eleva a produção literária no Brasil do séc. XXI a um patamar como não se provava, pelo menos, desde a morte de Hilda. E como lhe sou grato por isso.

Hoje cedo escrevi algumas palavras sobre Clarice, a minha, a nossa. Disse algo sobre absorvê-la como a um medicamento. O que me leva de volta ao espaço onde meus olhos leram as suas primeiras frases. Cada um de seus livros me faz voltar àquela espera médica, com a certeza de encontrar em você o tratamento exato para os meus anseios. E uma curiosidade final: quando fui guardar os seus livros de volta em minha estante, a ordem alfabética fez com que A Casa das Aranhas caísse ao lado de O Mágico de Oz (Frank BAUM, logo após BARBIERI, em minha prateleira). Fiquei olhando para os livros, lado a lado, com um sorriso nos lábios. Seus romances me levam ao exato lugar em que um dia, na infância, aquele mágico me levou. Um lugar onde encontro a mais plena liberdade, o sabor da fantasia e dos desejos, a certeza de que são em obras assim onde sempre continuarei motivando os meus dias, as minhas letras, quem eu sou.

Obrigado,
Nando

A Descoberta do Mundo (Clarice Lispector)

Há exatamente 9 meses eu abria a primeira capa deste livro. Mantive-o na estante por anos, sendo um daqueles que consultava de vez em quando, sem querer atravessá-lo por inteiro, para manter a sensação de que sempre haveria algo inédito para os meus olhos, em Clarice. Mas há 9 meses eu precisei quebrar o ritual de adiamento. Comecei a lê-lo no carro funerário, durante o trajeto que acompanhei para o translado do corpo de vovó, rumo a Pernambuco. Precisava me agarrar em algo, para além de Deus, de minha dor e do buraco que levava no peito.
A hora: 3h30 da madrugada. A viagem: 7 horas de duração. Durante a viagem, as primeiras 24 horas completas do óbito, o primeiro dia do meu novo estado de vida. O princípio da descoberta de que em toda morte também se nasce. Lembro-me de que segui naquele carro, absorvendo palavras em goles densos, lentos, como quando experimentamos aquele sabor nunca anunciado, de maneira calculada para não engasgar, e ao mesmo tempo perceber bem fundo a dimensão do gosto.
Se Bachelard é aquele que nos recorda ser a literatura uma homeopatia da angústia, entre minhas imagens favoritas e mais repetidas em aulas, hoje posso guardar “A Descoberta do Mundo” como a fórmula mais controlada, medida e exata para mim. Com o passar dos dias, continuei em todo o segundo semestre de 2019, lendo-o em gotas, uma ou duas páginas por lua, sem a pressa do fim. 2020 entrou, sem me trazer aquela determinação de encerrar as minhas leituras pregressas, sem a necessidade do marco zero. Como se a cada dia, a cada crônica, todo o meu ser zerasse naturalmente, e um novo calendário surgisse.
Nesta semana, finalmente, fecho sua contracapa. E ao me dar conta de que 9 meses foram completos nestas quase 500 páginas, o tempo de uma gestação, entendo que mais uma vez renasço. E em cada palavra que me medicou, que me tratou, reaprendi que o ineditismo dos olhos continua em todo amanhecer. Deus, a dor e o buraco também continuam em mim. Uma harmonia nova, em adaptação perpétua, para a qual as palavras sempre serão o ombro mais certo, o travesseiro mais quieto. Como sou grato por isso.

TOPs 2019

Considerando a quantidade absurda de leituras que fiz em 2019, a lista ficou pequena. Mas foram estes os melhores. Livros para um bom ano. Livros para a vida.
1. Enquanto Agonizo (William Faulkner)
2. Cristianismo Puro e Simples (C. S. Lewis)
3. A Descoberta do Mundo (Clarice Lispector)
4. Os Anos + As Ondas (Virginia Woolf)
5. Cosmogonias (Otto Leopoldo Winck)
6. Nuvens de Algodão (Abbas Kiarostami)
7. A Confissão da Leoa (Mia Couto)
8. O Enterro do Lobo Branco (Márcia Barbieri)
9. A Vida Passada a Limpo (Carlos Drummond de Andrade)
10. A Audácia Dessa Mulher (Ana Maria Machado)
11. Autobiografia (José Luis Peixoto)
12. As Alegrias da Maternidade (Buchi Emecheta)
13. Sayonara, Gangsters (Genichiro Takahashi)
14. Entre As Mãos (Juliana Leite)
15. Ponciá Vicêncio (Conceição Evaristo)

Mantendo a tradição de fim de ano, trago a lista com os filmes recentes que mais marcaram o meu olhar, durante 2019. Foi um ano bom. Que bom!
1. Ad Astra (James Gray, 2019)
2. 3 Faces (Jafar Panahi, 2018)
3. Vidro (M. Night Shyamalan, 2019)
4. Gente do Lago (Jean-Marie Straub, 2018)
5. Dor e Glória (Pedro Almodóvar, 2019)
6. Varda por Agnès (Agnès Varda, 2019)
7. Vitalina Varela (Pedro Costa, 2019)
8. Amor Até as Cinzas (Jia Zhang-Ke, 2018)
9. Sedução da Carne (Júlio Bressane, 2018)
10. Dumbo (Tim Burton, 2019)
11. O Hotel às Margens do Rio (Hong Sang-Soo, 2018)
12. Um Dia de Chuva em Nova York (Woody Allen, 2019)
13. Sophia, Na Primeira Pessoa (Manuel Mozos, 2019)
14. Missão Impossível: Efeito Fallout (Christopher McQuarrie, 2018)

E como sempre, encerro a partilha de listas com os melhores filmes que meus olhos tocaram em ineditismo durante o ano de 2019. Cabe destacar que o vencedor do primeiro lugar, talvez tenha sido a maior experiência que tive com o cinema em toda a década. Nunca é tarde. Sensibilidade avante!
1. Rosa de Areia (Margarida Cordeiro & António Reis, 1989)
2. Bérénice (Raoul Ruiz, 1983)
3. Othon (Jean-Marie Straub & Danièle Huillet, 1970)
4. Sherlock Jr. + The Cameraman (Buster Keaton, 1924/28)
5. Cléo das 5 às 7 + Uma Canta, A Outra Não (Agnès Varda, 1962/77)
6. A Religiosa (Jacques Rivette, 1966)
7. A Paixão de Ana (Ingmar Bergman, 1969)
8. Eu Acuso! (Abel Gance, 1919)
9. Marie Pela Memória (Philippe Garrel, 1967)
10. Ele Está no Deserto Contando os Segundos de Sua Vida (Jonas Mekas, 1986)
11. O Pecado Original (Jean Cocteau, 1948)
12. Vida de Casado + Relâmpago + Irmão, Irmã (Mikio Naruse, 1951/52/53)
13. Domínio dos Bárbaros (John Ford, 1947)
14. Golpe de Misericórdia + Recrutas e Enxutas (Raoul Walsh, 1949/59)
15. Close-Up (Abbas Kiarostami, 1991)
16. A Eternidade e Um Dia (Theo Angelopoulos, 1998)
17. Filme de Amor (Júlio Bressane, 2003)
18. Lírio Partido (David W. Griffith, 1919)
19. O Sol do Marmelo (Victor Erice, 1992)
20. A Cidade Branca + Uma Chama no Meu Coração (Alain Tanner, 1983/87)
21. As Bodas de Satã (Terence Fisher, 1968)
22. O Talho do Bosque (Vittorio Cottafavi, 1963)
23. Van Gogh (Maurice Pialat, 1991)
24. Bonequinha de Luxo (Blake Edwards, 1961)
25. Em Seus Braços + Caracol (Naomi Kawase, 1992/94)
26. O Profissional (Luc Besson, 1994)
27. A Raiva (Pier Paolo Pasolini & Giovanni Guareschi, 1963)
28. O Fim do Mundo (João Mário Grilo, 1993)
29. Maus Encontros (Alexandre Astruc, 1955)
30. Mad Max (George Miller, 1979)

TOPs 2018

Dentre as leituras que primeiramente fiz no decorrer de 2018, recomendo pelo menos 20 títulos que favoritei, nesta ordem:
1. Livro Sobre Nada (Manoel de Barros)
2. Narciso e Goldmund (Hermann Hesse)
3. As Rãs (Aristófanes)
4. Ainda (Pablo Neruda)
5. Outros Jeitos de Usar a Boca (Rupi Kaur)
6. Cartas (Mariana Alcoforado)
7. Os Dragões Não Conhecem o Paraíso (Caio Fernando Abreu)
8. Entre Quatro Paredes (Jean-Paul Sartre)
9. Sagarana (Guimarães Rosa)
10. O Coração Disparado (Adélia Prado)
11. O Jovem Törless (Robert Musil)
12. Pequena Crônica de Anna Magdalena Bach
13. A Vagabunda (Gabrielle Colette)
14. Sargento Getúlio (João Ubaldo Ribeiro)
15. Dias Felizes (Samuel Beckett)
16. Hotel Íris (Yoko Ogawa)
17. A Estepe (Anton Tchekov)
18. Confissões de Um Jovem Romancista (Umberto Eco)
19. Caçando Carneiros (Haruki Murakami)
20. A Última Madrugada (J. P. Cuenca)

Agora seguem os melhores filmes contemporâneos que descobri durante o ano, valendo as produções dos últimos 3 anos.
1. Bela Adormecida (Adolfo Arrieta, 2016)
2. 24 Frames (Abbas Kiarostami, 2017)
3. Imagem e Palavra (Jean-Luc Godard, 2018)
4. No Coração da Escuridão (Paul Schrader, 2017)
5. O Amante de Um Dia (Philippe Garrel, 2017)
6. Beduíno (Júlio Bressane, 2016)
7. À Espera dos Bárbaros (Eugène Green, 2017)
8. Que o Diabo nos Carregue (Jean-Claude Brisseau, 2018)
9. The Post – A Guerra Secreta (Steven Spielberg, 2017)
10. A Câmera de Claire (Hong Sang-Soo, 2017)
11. A Bela e Os Cães (Kaouther Bem Hania, 2017)
12. Roda Gigante (Woody Allen, 2017)
Foi um ano muito melhor de desbravar do que os dois anteriores, quando praticamente nada recente fazia sentido para mim. Depois de Arrieta, o cinema pós-2015 finalmente avançou. Como de costume, os 3 primeiros lugares se destacam imensamente em relação ao resto da lista, poderia fechá-la só neles. Mas todos os outros também tiveram sua parcela de importância em meus olhos, pelo que mantenho a tradição das 10 posições para ampliar as sugestões aos que gostam de recolhê-las nos murais amigos. E que 2019 venha, avante!

E finalmente, numa perspectiva mais ampla, a lista de melhores filmes tocados pela primeira vez durante o ano de 2018. Aos que me acompanham no MKO, não deve haver surpresa alguma. Que assim prossiga, cinefilia de partilha e amor. Sensibilidade avante!
1. Grandeza e Decadência de Um Pequeno Negócio de Cinema (Jean-Luc Godard, 1986)
2. O Testamento de Deus (Jacques Tourneur, 1950)
3. A Cor da Romã (Sergei Paradjanov, 1969)
4. Le Navire Night (Marguerite Duras, 1979)
5. Reminiscências de Uma Viagem à Lituânia (Jonas Mekas, 1972)
6. Fortini / Cani (Straub & Huillet, 1976)
7. Daguerreótipos (Agnès Varda, 1976)
8. Réquiem Para Uma Mulher + Rosa La Rose (Paul Vecchiali, 1979 / 1986)
9. A Estratégia da Aranha (Bernardo Bertolucci, 1970)
10. O Sucesso é A Melhor Vingança + Mãos ao Alto! (Jerzy Skolimovski, 1984 / 1981)
11. Ukamau (Jorge Sanjinés, 1966)
12. Como Esposa, Como Mulher + Filha, Esposa, Mãe (Mikio Naruse, 1961 / 1960)
13. Miguel + Duas Pessoas (Carl Th. Dreyer, 1924 / 1945)
14. As Contrabandistas (Luc Moullet, 1968)
15. Aquele Dia na Praia (Edward Yang, 1983)
16. Fruto de Verão (Lewis Gilbert, 1961)
17. Nuit Noire, Calcutta (Marin Karmitz, 1964)
18. The Good Bad Man (Allan Dwan, 1916)
19. As Antiguidades de Roma (Jean-Claude Rousseau, 1991)
20. We Can’t Go Home Again (Nicholas Ray, 1973)
21. O Canto da Sereia (Noémia Delgado, 1983)
22. A Casa (Nobuhiko Obayashi, 1977)
23. Deaf (Frederick Wiseman, 1986)
24. O Fenômeno Nebuloso de Maloja (Arnold Fanck, 1924)
25. O Nascimento do Amor (Philippe Garrel, 1993)
26. Anno Uno + O Messias (Roberto Rossellini, 1974 / 1975)
27. A Família Moromete (Stere Gulea, 1987)
28. As Aventuras de Hajji Babba (Don Weis, 1954)
29. A Estação da Bruxa (George Romero, 1972)
30. As Máscaras (Ida Lupino, 1964)

Grandeza e Decadência de Um Pequeno Negócio de Cinema / Grandeur et Décadence d'Un Petit Commerce de Cinéma (Jean-Luc Godard, 1986)

Uma das experiências em que a melancolia pulsa mais forte junto ao pensamento de Godard, como um nervo exposto, uma ferida jamais cicatrizada porque não lhe prestaram o devido tempo de exposição aos ventos, este telefilme se perpetua em tom menor na carreira de um artista que sempre concedeu, às pequenas obras, a justa posição da harmonia musical – cada semitom é importante para a formação de um acorde. Apesar de pouco visto e lembrado, Grandeur et Décadence não pode deixar de figurar como um dos fundamentos para se compreender a posição assumida com o audiovisual, por seu realizador, no correr dos anos 1980, recuperando o espírito e a inquietação presentes em diversos autores que se atreviam a transitar entre o cinema e a televisão. Muito mais do que os filmes imediatamente posteriores ao lançamento de Passion, aqui está o maior elo entre o início daquela década e a futura ambição de Histoire(s) du Cinéma, já revelada nestas sombras, nesta louca e obsessiva pesquisa de formas. 

Aqui voltamos aos bastidores, ao lado das lentes que mais interessa Godard na feitura de um filme, ou no simples desejo de que ele seja feito. Mise en abyme como pretexto, MacGuffin hitchcockiano para o que realmente importa na exploração da linguagem, há no enredo todos os clichês e caricaturas que cercam uma produção. O conflito não é saber se o filme será, ou não, concluído, se o dinheiro bastará, ou se os melhores atores serão encontrados. Como é típico no diretor, todas estas crises se esvaziam em detrimento de uma angústia mais bem partilhada pela montagem do material recolhido para narrar a trama. São os fades e fusões entre as imagens, assim como o esmagamento de elipses e raccords; é o equilíbrio entre a música pop e a erudição de Bartok, tanto quanto a experimentação desdramatizada de vozes, aquilo que determina a atmosfera dominante, o tom de lamento que percorre todo o filme. Por sinal, é deste completo esvaziamento que brotarão as Histoire(s), prenunciadas na estilística aqui disposta.

Não deixa de ser um cortejo fúnebre cada uma das sequências em que vemos a longa fila de pessoas sendo testadas para o casting. Numa sucessão deleuziana, em que se repetem monocordicamente as falas, os corpos e os ângulos, temos aí uma busca pelo que jamais se satisfará. Os closes que se sobrepõem, os traços de faces investigados em slow, longe ficam das sublimes presenças de screentests que unem Warhol e Garrel. Aqui, a rostidade é exposta para se anular, os desejos são estabelecidos para se frustrarem, como bem representa a personagem de Eurídice, aspirante a atriz que não convence nem o produtor, seu marido, e nem o diretor de que pode ser a resposta para suas buscas. Enquanto um afirma ser o rosto dela clássico demais, parecido inclusive com uma intérprete de Renoir, o outro teme que ela jogue fora a sua vida como fazem todos os que estão envolvidos com as filmagens. Ao que ela pergunta: “É verdade que os filmes matam a vida?” Já não é possível que o clássico simbolize algo além da morte, parece responder a dura resistência em se permitir que Eurídice atue ou, sequer, faça também um dos testes. É como se houvesse na câmera algo esperando para lhe roubar a alma.

Em meio às admoestações, o produtor demonstra alguma saudade pelo preto e branco das primeiras fotografias, sugerindo que talvez estas pudessem dar conta do rosto de Eurídice. Ele declara que o P&B documentou o amanhecer de uma linguagem, o que serve para confirmar parte da lógica que move as cores de Grandeur et Décadence, inclusive pela iminente pasteurização do vídeo. Ao contrário do produtor, o filme dentro do filme – que talvez por esta oposição não se concretize – não encontra espaço para nostalgia, e se dele emana uma notável tristeza, trata-se não de um pesar pelo que se perdeu no tempo, mas pelo que não poderá se capturar do futuro. Já não é possível representar uma arte que não seja crepuscular, uma linguagem que não se abandone aos últimos gestos de expressão que lhe cabem, daí ser todo este filme um movimento em torno da Noite, um cotejo da madrugada e das horas que não se sustentam em um relógio. Autoconsciência da caixa preta (TV) em relação à sala escura (cinema), dois espaços de pura treva, caso não nasça a imagem. 

Não por acaso, é no meio da noite a cena em que o diretor do filme não mais resiste ao peso das circunstâncias (de ser personagem de si mesmo, de ser mais uma peça no maquinário que tenta conduzir): num movimento quase teatral, ele estaca no meio de um cômodo e desaba os ombros, pende a cabeça, parecendo desligar-se como um autômato a que escapou toda energia. Da mesma forma, vemos desligarem algumas das questões que outrora ocuparam Godard, acentuando-se a sua nova compreensão de estética, o renovado anseio por saber tudo o que pode um filme. É outra a revolução que podemos esperar a partir daqui, mais amplo o combate, o esforço de lidar com artes que agonizam. Num filme que anoitece, a ironia é urgente: reacende-se a busca pela luz.

***Texto originalmente publicado no Catálogo CCBB