Que eu saiba, ou tenha notícia, nenhum filme de Jean-Claude
Biette passou até agora em Portugal. Não são de resto muitos, para um cineasta
que se estreou (na curta metragem) há mais de 30 anos, em 1961. Mas apenas em
1977, Biette conseguiu os meios para passar à longa metragem com “Le Théatre
des Matières”, que veremos 2ª feira. Depois, cinco anos de intervalo e “Loin de
Manhattan”. Uma participação no filme coletivo “L’Archipel des Amours” (1983) e
mais sete anos de intervalo até chegar este cogumelo dos Cárpatos. Depois dele,
há já uma quarta longa metragem (de que não se conseguiu cópia): “Chasse Gardée”,
estreada em 1991. Por agora, a proposta de um “Robinson Crusoe”, a rodar em
Portugal, co-produzido por Paulo Branco (já co-produtor de “Loin de Manhattan”).
Um realizador “à Bresson” ou “à Tati” que pensa longamente
os seus filmes e longamente os amadurece, com rodagens igualmente longas? Nesse
sentido, não. Apenas um realizador (e é o caso de tantos dos nomes mais válidos
do atual cinema francês) que não transige com os chamados “gostos do público”,
com o que Rivette chama “filmes cinzentos” e prossegue uma obra vincadamente
pessoal, longe dos padrões dominantes das “cinzentas” décadas em que filmou.
Por isso mesmo, os seus filmes não aguçaram o apetite a qualquer distribuidor português.
Biette, como tantos dos seus companheiros de aventura (Jacques Davila, Gérard
Frot-Courtaz, Jean-Claude Guiguet) permanece à margem e na margem. À
exceção de algumas “capelas” a sua obra não suscita qualquer culto. E no entanto
são estes cineastas os homens da “resistência” de que falava Daney, os homens
que continuam a procurar a “grandeza na pequenez”. Deles se continua a fiar a gloriosa
herança das gerações da “nova vaga” e dos idos dos anos 60. Se os “antepassados”
tiveram a sorte de viver tempos menos estúpidos (e graças ao nome que então fizeram puderam continuar
as carreiras nos ciclos de prestígio) a esta geração coube-lhe o ostracismo.
Por agora, são eles que fazem o papel de “ET” num “planeta” que deixou de os reconhecer
e em que deixaram de se reconhecer. Um dia virá – e graças a eles virá – em que
os filmes que fazem serão redescobertos e não teremos que corar tanto com tanta
abdicação e tanta traição.
“Le Champignon des Carpathes” é emblemático dessa insularidade. No Positif chamam-lhe um filme exangue.
Quem será ainda capaz de ver o sangue
que circula nestas obras? Quem será ainda capaz de acreditar no champignon des Carpathes, a flor que tem
todos os poderes, desde que a afastem da luz? Quem pode seguir ainda esta
viagem na obscuridade e no mistério? Quem é ainda capaz de sustentar o primado
das personagens sobre a “história” e de criar para nós criaturas tão
fascinantes como Laura Betti, Patachou ou a Ofélia entorpecida pelas radiações
nucleares, pedindo (ou exigindo) ao espectador que estabeleça os nexos entre
eles e não os deixando divagar na historiazinha da papinha feita, para entreter
e para esquecer? Pode dizer-se ou pensar-se tudo de “Le Champignon des
Carpathes”. Dificilmente se poderá negar que este é um filme que nos respeita e
nos respeita na medida em que exige de nós uma atenção muito diversa do que nos
pedem os traficantes de imagens, ou dos que se servem delas para ilustrar (aos
quadradinhos) uma história em que não põem nem uma gota de sangue nem uma gota
de leite.
Pense-se, por exemplo, na personagem de Madeleine. Mal a
vemos no início (esse início que nos faz pensar num filme de ficção científica)
quando junto às ondas e ao mar (que só voltarão no final) foi atingida pelas
radiações da explosão de uma central atômica. Depois, saberemos que era ela
quem devia interpretar o papel de Ofélia na encenação de Hamlet dirigida por um encenador também crescentemente desadaptado
do mundo que o cerca.
Não há, em torno dela, uma intriga, no sentido em que não nos perguntemos durante o filme se
ela vai se salvar ou não, se vai ou não voltar aos palcos. Mas vejam-se com
atenção esses belíssimos planos crepusculares dela, na casa de saúde. E sem que
nenhuma expressa indicação nos seja dada, é impossível não a associarmos
profundamente à própria essência do seu personagem. Madeleine é Ofélia, muito
mais Ofélia do que se lhe pusessem na boca os diálogos shakespearianos, do que
se a fizessem interpretar a cena da loucura ou do que se lhe descrevessem a
morte, nos salgueiros. A inocência perdida, a crueldade do destino, os jogos
cruzados abatendo-se sobre uma “menina e moça”, um amor dado e por dar, tudo
isso e o mais que se possa dizer sobre a Ofélia shakespeariana está nesses
planos de Madeleine, longe e perto dos cogumelos dos Cárpatos. E tudo isso só o cinema o pode dar e o
pode dar assim. Cerra-se a luz em torno dela e cerra-se para nós a vida.
É muito belo ver um filme em que as imagens errem desta maneira. Não são precisas
longas histórias para contar o que nunca se pode contar: o reencontro entre um
pai e uma filha, cada um deles vacilando nas certezas da sua identidade ou da
sua relação; a tentação de ir buscar algo de novo ao Hamlet e o desespero de encontrar na sala a fazer de teatro sombras
dos próprios fantasmas; a incidência de uma catástrofe coletiva em pequenas
trajetórias pessoais.
“Cinéma, cinema, ça
rime avec quoi?”, pergunta-se a certa altura. E de todas as imagens ficamos
com as duas únicas vezes em que a música aparece no filme: a marca fúnebre do Sonho de Uma Noite de Verão, ouvida
durante o genérico inicial e a trompa do pastor de Tristão, ouvida no genérico
final. Ocultos apelos, como essas notas de música. E fica-nos sobretudo o
imenso espaço subterrâneo que atravessa este filme e o faz cada vez mais fugir
da luz e encerrar-se em segredos.
João Bénard da Costa (Setembro de 1992)
[transcrito do Tomo I, 1º Vol. de seus Escritos Sobre Cinema]